sexta-feira, 15 de abril de 2011

"Glória da Manhã"

Plantei na frente da minha casa, uma trepadeira. Nome bonito: “Glória da Manhã”. Pensei que o ipê, que neste período do ano está triste e sem cores, se alegraria se o seu tronco cinza se cobrisse de flores azuis. E assim foi. As sementes germinaram rápidas, os ramos cresceram esguios e sinuosos, e a rua se encheu logo de uma cor nova...
Acho esta flor muito especial.
Primeiro, pela beleza. Simetria pentagonal, quase circular. Uma única pétala, em forma de cálice. E o azul claro, quase transparente. Ela se abre logo que o sol aparece. Daí o seu nome, “Glória da Manhã”.
Isso tudo é alegria. Walt Whitmann dizia que uma “Glória da Manhã” na sua janela lhe trazia mais prazer que todos os livros de filosofia. Com o que eu concordo. Porque aquela flor fala alguma coisa. Nós sempre conversamos...
Mas há uma tristeza: é efêmera. Lá pelas doze horas, quando o calor é mais intenso, começam a aparecer no azul sinistras estrias roxas, sinal de que o fim está chegando. Sua vida não dura mais que sete horas. Logo a pétala se enruga, murcha, enrola-se, torna-se toda roxa. Morreu. Nunca mais. Se o Vinícius a tivesse visto talvez tivesse mudado o seu poema: “Não é eterna, posto que é flor, mas é infinita enquanto dura...” Comove-me a sua tranqüila beleza pela manhã – sem saber que em breve estará morta. Ou saberá? Talvez seja por isto mesmo, por saber, que ela se abre com beleza tão intensa... Sabe que não há tempo a perder, que é inútil lamentar, que só lhe resta ser bela. Fico pensando se o mesmo não aconteceria conosco. Talvez, se percebêssemos que somos efêmeros como a “Glória da Manhã”, seríamos tão belos quanto ela. Mas a manhã seguinte nos reserva uma surpresa. Porque a trepadeira que viu morrer, na véspera, as dezenas de flores que a cobriam, já se havia preparado. E outras tantas se abrem de novo, ao nascer do sol, repetindo a mesma beleza, a mesma tristeza, como se fosse um tema que se renova sem cessar: vida e morte, vida e morte...
Gostaria de poder ser como ela: viver intensamente o momento que me é dado, fiel apenas à beleza que mora em mim.
Disse que plantei. Ela nasceu, cresceu, floriu. Acho que alegrou muitos que por ali passaram. Mas alguém se ofendeu com beleza tanta. E a arrancou. Tentei replantá-la, mas foi inútil. A vida, por vezes, é assim. Dado o golpe letal, ela não se recupera. Pensei nessa absurda assimetria entre a vida e a morte. A vida, para ser, leva tempo, demanda paciência, exige cuidados, há que se esperar. Mas a morte vem súbita e definitiva. Uma árvore leva anos a crescer. O machado a abate em poucos minutos. Espantou-me uma coisa inesperada: que ela continuou a florescer mesmo depois de cortada, por dois dias. Imaginei que o seu desejo de viver era de tal forma intenso que ela ajuntou a pouca seiva que restara nos seus ramos e floriu de novo, a mesma beleza, sem nenhuma mágoa, sem nenhum espinho. Lembrei-me do poema da Cecília Meireles:
“Sede assim – qualquer coisa serena, isenta, fiel. Flor que se cumpre sem pergunta”. A morte me entristeceu. Não a morte que acontece, depois de sete horas de vida, quando a flor já cumpriu o seu destino. Mas a morte que mora na alma dos homens. De que coisas não é capaz uma pessoa que destrói uma flor...
Mas não importa.
Guardei as sementes.
E já semeei de novo.
Em breve haverá uma outra “Glória da Manhã”, em volta do mesmo ipê.
É Domingo de Páscoa.
Triunfo da vida sobre a morte.
Um bom dia para semear uma flor...


(Tempus Fugit, Rubem Alves)

2 comentários:

  1. É estranho a similaridade de alguns seres. A borboletas vivem em média 2 semanas. Existe um tipo na Costa Rica que vive apenas 2 dias. Permanecem a maior parte da vida como lagarta, fazendo reserva de energia para quando se tornar uma crisálida. Não é tão bela enquanto lagarta. ...mas quando se tornam borboletas vivem intensamente. A sua leveza diante da vida faz pensar que planam ao invés de voar. Mexe com nossos sentimentos quando pensamos na ousadia de um animal ao devorar um ser tão frágil, inofensivo e de pouca vida. Se pudesse ser verbalizado a força motriz de sua vida, seria, como canta o grupo cristão rajaton na música butterfly: "tomorrow i'll die". A iminência da morte faz-nos ansiar pela vida. Por que alguns animais "perceberam" que devem viver a vida plenamente enquanto a possuem e nós gastamos nossos segundo com vaidade e naquilo que não se redundará em paz, alegria e amor?

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  2. Não acho que seja de propósito. Acho que nós não sabemos direito o que de fato se redundará em paz, alegria e amor e, por isso, nos perdemos por tantos caminhos. No fundo, gastamos nossos segundos atrás justamente dessas coisas, mas por maneiras erradas. Nós, seres humanos, somos tão confusos. Eu mesma, sinto-me tão limitada, tão impotente quanto à verdade sobre tudo. Viver intensamente - o que seria isso? - eis o meu conflito. Por causa disso, às vezes quero achar que viver intensamente é, na verdade, viver moderadamente, como a borboleta que respeita o seu tempo de lagarta... Espero que entenda meus desvarios.

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